Projeto Camisa 10

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sexta-feira, 11 de novembro de 2011

No olho do Furacão: Jairzinho e sua fábrica pela vida na 'Faixa de Gaza'

Tricampeão mundial em 70 faz 400 jovens sonharem com mundo melhor
na escolinha montada no Complexo de Manguinhos, área violenta do Rio

Por Márcio Mará Rio de Janeiro

jairzinho furacão copa de 70 (Foto: Agência O Globo)
Furacão em 70, Jair comemorou gols de joelhos,
fazendo o sinal da cruz (Foto: Agência O Globo)
Destemor e autoconfiança sempre foram marcas inconfundíveis de um certo herói brasileiro. Foi em 1970, no México, que Jair Ventura Filho, o Jairzinho, Furacão da Copa, essencial na campanha do tricampeonato mundial - fez gols em todas as partidas -, mostrou ao mundo como conseguia, com uma bola de futebol, arrancar o sorriso de milhões de crianças. Para recordar, é só olhar no You Tube: o chapéu no goleiro, a matada no peito, o tiro de misericórdia para o fundo das redes. Ou então, após outro gol, a comemoração clássica, de joelhos, fazendo o sinal da cruz. O gesto de agradecimento por tudo já começava ali. A cena cinematográfica virou símbolo da glória que pontuou a carreira de um personagem tipicamente canarinho: o talento e a perseverança  venciam barreiras.
Quarenta e um anos depois da maior de todas as vitórias, muita coisa aconteceu na vida do ídolo, artilheiro do Brasil em 1970, com sete gols. O Maracanã permaneceu como o palco de grandes shows com o Botafogo. Mais tarde, até os franceses bateram palmas para seu talento em Marselha, quando brilhou no Olympique. Voltou ao Brasil e foi uma das estrelas do Cruzeiro quando o clube ganhou a América do Sul. Um pouco antes de pendurar as chuteiras e logo depois, viveu aventuras. A maior, no Gabão, país africano, onde foi técnico. Mas faltava algo mais para Jair. Agora, ele segue na missão de fazer os mais carentes sorrirem. Mas longe dos holofotes. No olho do Furacão, literalmente.
Pelo menos duas vezes por semana, há um ano e dois meses, Jairzinho atravessa o túnel tal como entrava na área adversária. O novo palco fica no nada pacífico Complexo de Manguinhos, na Zona Norte do Rio. Encravado na comunidade de Varginha, com as favelas Mandela 1, Mandela 2  e Mandela de Pedra ao redor - batizadas com o nome do líder sul-africano emprestado ao conjunto habitacional criado ali -, e com uma cracolândia por trás, o campo de futebol  que foi do clube Rio-Petrópolis fica no coração da chamada Faixa de Gaza, uma das áreas mais violentas e controladas pelo poder do trático no Rio. Bem modesto, com o tamanho mínimo oficial, não tem drenagem. Mas é o suficiente para o ídolo, aos 66 anos, comandar a Fábrica de Talentos Furacão. Lá, faz 400 jovens, entre 9 e 19 anos, sonharem com um mundo melhor, bem diferente do que vivem.
Alunos Jairzinho furacão treino manguinhos (Foto: André Durão / Globoesporte.com)
Alunos ouvem palestra de Jairzinho (C) antes de começar a aula no campo situado no "coração" da Faixa de Gaza, em Manguinhos, rodeado pelas favelas  (Foto: André Durão / Globoesporte.com)
- Procuro devolver aquilo que eu recebi. Também venho de comunidade carente. Depois de ter alcançado o objetivo de ser jogador de futebol, hoje retribuo. Queremos formar o homem. Dar a ele uma condição de vida melhor, integrá-lo no esporte para que possa adquirir disciplina de vida, na parte alimentar, de repouso, disciplina do compromisso que tem de vir treinar, do respeito pelos companheiros. Toda essa cidadania que a gente tem que passar para essa mocidade de hoje. Ainda há muitos desamparados - afirmou Jairzinho.
Procuro devolver aquilo que recebi. Queremos formar o homem"
Jairzinho
No discurso antes da aula, o tricampeão mundial de 1970 voltou a explicar à garotada a necessidade de mostrar à sociedade o quanto ela é injusta por essa exclusão social com os mais necessitados. Na Escola de Talentos Furacão, Jairzinho conta com uma equipe para ajudá-lo na empreitada de formar cidadãos. Entre os dez profissionais, um é seu braço direito. Jorge Eiras, amigo há mais de 30 anos, conheceu-o no Botafogo. Campeão de polo aquático, formou-se depois em Educação Física, pela Uerj, com mestrado. Acompanhou o ídolo em vários países, entre eles Grécia e Gabão. É uma espécie de faz-tudo. Organiza a casa.
- Esse projeto tem como objetivo vir aqui salvar vidas. Dar oportunidade num local que não tem atividade física nem trabalho social. A gente busca o talento, mas sobretudo a vida. Tirar o garoto da marginalidade. Aproveitamos ex-profissionais, aumentando a autoestima deles. Trouxemos o Marco Antônio e o Amarildo, campeões do mundo, além do Osires e o Waltinho, ex-Fluminense, nos anos 70. Jair sempre teve esse olho clínico. Tanto que descobriu o Ronaldo Fenômeno. Aí, quando vê um talento aqui, tem moral de chegar para um Sebastião Leônidas, do Botafogo, e indicar para o clube. Foi um agora para o Flamengo, o Felipe. Tem 14 anos, é meio-campo. Tem um menino também no Atlético Paranaense, o Rômulo. A gente vai dando oportunidade. Mesmo que o garoto não seja um craque, pelo menos ele está aqui fazendo algo - disse Eiras.
Jairzinho furacão treino manguinhos (Foto: André Durão / Globoesporte.com)
Jairzinho treina na Escola de Talentos jovens dos 9 aos 19 anos (Foto: André Durão / Globoesporte.com)
Tanto Eiras quanto Jairzinho afirmam que não participam de qualquer agenciamento. No máximo, se os pais quiserem, eles indicam dois amigos de confiança,  "amantes do futebol", segundo o Furacão. Sem visar ao retorno financeiro, o ídolo acaba, em alguns momentos, tendo dificuldade de tocar o projeto.
- Estou feliz com a oportunidade que estou dando para uma série de garotos aqui. Nem todos conseguem, a gente sabe. A própria comunidade apoia. Se você fizer um censo perguntando o que acham do Jairzinho, vão elogiar. No início deste ano, tivemos uma paralisação de dois meses e ficou a ponto de ser desativado. Tinha que ver a comunidade como ficou... O projeto teve um período contratual, terminou, estávamos sem recursos, precisei suspender. Teve pai aqui que chorou. A gente atende todo mundo. Homens, mulheres, crianças, tem futebol feminino,  lanche diário. No café, dou Toddynho com biscoito para a garotada. Vêm alguns pais, que pedem. Fazemos comida para eles - afirmou o Furacão.
Dificuldades
O projeto da Escola de Talentos Furacão começou com o apoio da Secretaria de Ciência e Tecnologia, mas agora precisa de verba própria. A Coca-Cola ajudou apenas com os uniformes. Alguns botafoguenses, como o empresário Sávio Neves, primo do senador de Minas Gerais Aécio Neves, dão contribuição para garantir a continuidade. Eiras e Jairzinho dizem que, quando a  situação complica, são obrigados a tirar do próprio bolso. Os salários dos ex-jogadores, como do tricampeão mundial Marco Antônio e de Waltinho, são de R$ 1.000 - Amarildo anda afastado, com problemas de saúde.
- Estamos aqui para amenizarmos o que podemos desse sofrimento. Outro dia eu estava vendo na TV os caras que foram detidos pela morte do cinegrafista da TV Bandeirantes (Gelson Domingos da Silva, morto no último domingo). Se não me engano, eram todos jovens. Isso é falta de quê? Oportunidade de vida. Todo mundo quer viver. Todo mundo sabe o que é tomar um café, almoçar, jantar, fazer um lanche, dormir, se vestir. Mas se você não dá condição, como é que vai ser? Essa diferença social é maldosa.
jairzinho furacão escolinha manguinhos (Foto: André Durão/Globoesporte.com)
Furacão ensina fundamentos do futebol e também
da vida (Foto: André Durão/Globoesporte.com)
Ajudar a reparar as injustiças sociais é uma das motivações que movem Jairzinho. Ele conhece como poucos o caminho para driblar as dificuldades. Afinal, segundo ele mesmo conta, passou por seis operações no corpo nos tempos de jogador. Todas tiveram como causa uma entrada desleal. Uma cirurgia foi do quadríceps quase esfacelado pelo xerife Moisés, ex-Vasco. O Furacão parou por um ano e dois meses e quase ficou inutilizado. Houve também a fratura do quarto e quinto metatarsos. Culpa, segundo ele, de Altair, ex-Flu. O deslocamento na clavícula teve como autor Assis, que também jogou no Tricolor. Nada, no entanto, que o fizesse desistir.
- Marcadores violentos eu tive vários. Moisés estourou meu quadríceps, quase me aleijou em 1971. O Botafogo perdeu o título graças a ele. O que acontecia quando eu estava no Botafogo é que tinha treinador que mandava me pegar. "Tira o Jair do jogo que a gente ganha." Fui o primeiro no mundo a fazer enxerto ósseo... Mas marcador para me parar na bola, que me marcou mesmo, não teve nenhum. Não tenho humildade para isso não.
Jair dá um tempo, para e continua o desabafo. Vem à lembrança do ídolo um caso recente, desse período em que segue na causa nobre que comanda em Manguinhos. Um dos jovens que treinou e tinha tudo para realizar seus sonhos acabou abatido pela violência.
- Teve um garoto que eu peguei, ele já estava fazendo treinamento no Flamengo... Aí tem aquela casa de shows, Via Show. Ele estava lá, morreu. Numa daquelas baladas. Executaram tanto ele como um amigo. Estava com 17 anos. Foi dramático. Mas não é só ele não. Outros vão embora.  Mas daqui, desses 400 que temos hoje, não há nenhum com problema. Eles vêm aqui e me respeitam. Se não me respeitarem, estão fora - disse o Furacão.
Oportunidades
Continuar os estudos é uma das obrigações para se manter na escola de Jairzinho. Nathan da Silva Vieira, 13 anos, mora no Mandela 2 e foi lá para pedir uma vaguinha, antes de ir estudar. Torcedor do Fluminense, tem como ídolo o atacante Fred, mas usa para levar os livros uma bolsa do Manchester United. Um amigo de colégio, chamado Lucas, que já está na Escola de Talentos Furacão, lhe contou das coisas boas que encontrou na escolinha.
- Somos educadores, orientadores, conselheiros. Chegamos à conclusão que a única saída é o estudo. Quando o garoto chega aos 18 anos, o clube já não aceita mais porque está velho. Então, se estiver bem estruturado, a vida vai seguir. Aproveita a oportunidade. Agora, esses garotos têm boa chance e um ídolo como o Jair como exemplo. Sou suspeito de falar, eu era marcador dele. Foi uma honra estar do lado do Jairzinho. A gente sempre enfatiza: "Meninos, estudem. A saída é craque na bola, craque na escola" - afirmou o ex-jogador Waltinho, um dos professores.
Alunos Jairzinho furacão treino manguinhos (Foto: André Durão / Globoesporte.com)
Ex-jogadora, Graciara trabalha na Escola de Talentos
de Jair (Foto: André Durão / Globoesporte.com)
Quem também trabalha duro no projeto é Graciara da Silva. Conhecida na comunidade como Gagui, a ex-jogadora de futebol é mãe de um dos alunos de Jairzinho. O filho conheceu o projeto, e ela passou a frequentar as aulas. Como estava cursando educação física, ganhou uma oportunidade de trabalhar com o Furacão. Segundo Graciara, o entrosamento foi crescendo com o passar do tempo. E hoje, o único ponto de referência no território é a Escola de Talentos.
Ainda segundo Gagui, não existe outro projeto de esportes ou educação na área, só alguns feitos no ano passado com o PAC, mas que não abrangem todo o território da comunidade da Varginha, o Carlos Chagas.
- Aqui tem criança do Mandela 1, Mandela 2, Embratel, Barraquinho, Manguinhos, Jacaré, Benfica, Amorim, todo o Complexo de Manguinhos. Trabalhamos em dois horários. Atrás do campo teve uma cracolândia. Fiquei pensando no que poderia fazer. As crianças cresciam e iam direto para as drogas, para o tráfico. Comecei a chamar todo mundo. Antes os pais me procuravam e diziam: "Arruma uma vaga para o meu filho porque ele é bom de bola. Depois, a fala mudava: "Arruma uma vaga para o meu filho que ele já está usando droga." Aí começamos a trabalhar mais efetivamente, já pegando o telefone. Eu começo o contato ali. A gente precisa de uma estrutura muito maior, psicológica. Mas o projeto tem sido maravilhoso. As crianças estão felizes. O Jairzinho se move da Zona Sul para cá. Chega com aquele sorriso, acolhendo todo mundo. E estamos aprendendo. Aqui, na verdade, é uma fábrica de cidadãos honestos, íntegros.
Alunos Jairzinho furacão treino manguinhos (Foto: André Durão / Globoesporte.com)
Darlan, 14 anos, sonha com chance no futebol
(Foto: André Durão / Globoesporte.com)
Um dos candidatos a mudar de vida é Darlan Leandro Viana Salles, 14 anos. O garoto leva jeito. Torcedor do Flamengo, tem como ídolo Neymar, e mostrou desembaraço e personalidade.
- Jogo no ataque, sou destro e gosto de driblar. Mês atrás, fiz um teste no Nova Iguaçu, mas não passei por causa do tamanho. O professor pediu para eu voltar no ano que vem, com mais corpo. Tenho quatro irmãos e moro no Mandela 1. De manhã faço esporte, de tarde estudo no colégio Gonçalves Dias, em São Cristóvão. Estou tirando boas notas. No recreio, gosto de bater bola, brincar... Aqui não sou só eu que arrebento, tem muita gente boa também - afirmou, com o sorriso da esperança de, um dia, sair da Faixa de Gaza para brilhar como um Furacão. Como Jairzinho.

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